Decisões têm forte impacto para alguns setores, como o de franquias.
Os municípios venceram neste ano importantes disputas sobre ISS no Supremo Tribunal Federal (STF). Os ministros mantiveram, em sessões virtuais, a cobrança sobre contratos de franquia, serviços de farmácias de manipulação, compartilhamento de postes e distribuição e venda de bilhetes de apostas, como jogos de loteria, com alíquotas que variam entre 2% e 5%, a depender da lei municipal.
Algumas discussões têm impacto bilionário para os contribuintes. O Jockey Club Brasileiro, no Rio de Janeiro, tem R$ 1,5 bilhão inscrito em dívida ativa. O de São Paulo discute cerca de R$ 380 milhões. As informações são de Ricardo Almeida, assessor jurídico da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (Abrasf), que atuou a favor dos municípios em boa parte desses casos no Supremo.
Por nota, o Jockey Club de São Paulo informa que não reconhece a dívida e entende a cobrança como indevida. O Valor não conseguiu localizar representantes do Jockey Club Brasileiro para comentar o assunto.
Na área de franquias, segundo Fernando Tardioli Lúcio de Lima, diretor jurídico da Associação Brasileira de Franschising (ABF), o impacto foi enorme. A ruptura da jurisprudência, acrescenta, causou surpresa e deixou o setor em uma situação delicada. Grande parte das pequenas e médias franquias não judicializou o tema e também não pagou o ISS e não teria condições de arcar com essa dívida.
Por isso, Tardioli afirma ser importante que o Supremo module os efeitos da decisão para que passe a valer apenas a partir da data do julgamento. “Com o cenário atual de pandemia, o impacto social da decisão do Supremo é inegável”, diz.
Os contribuintes foram derrotados nessas disputas, de acordo com advogados, porque o STF passou a aplicar um conceito mais amplo para definir a incidência do ISS. Até então, valia o que havia sido consolidado em 2001, quando houve a edição da Súmula Vinculante nº 31. O texto, ainda em vigor, afirma ser inconstitucional a incidência do ISS sobre operações de locação de bens móveis.
Na ocasião, os ministros entenderam que o imposto se restringia exclusivamente a atividades que envolvem obrigação de fazer (determinado serviço). Ficaria sob a incidência do ICMS a obrigação de dar (algo produzido ou comercializado). O julgamento afastou a incidência de ISS sobre a locação de andaimes, veículos e filmes.
Esse entendimento começou a ser alterado em 2009, afirmam advogados, quando o Supremo determinou que incidiria ISS sobre as operações de leasing financeiro (RE 592905). “No julgamento, alguns ministros passaram a entender que se existe a obrigação de fazer entre as atividades preponderantes, cabe tributação”, diz Paulo Vieira da Rocha, sócio do escritório VRBF Advogados.
O assunto voltou ao STF em 2016, quando os ministros definiram a incidência do ISS sobre a comissão recebida por plano de saúde — diferença entre o que paga o contratante e o que é repassado aos prestadores de serviços (RE 651.703).
Na época, o relator, ministro Luiz Fux, deixou claro que o tribunal, ao permitir a cobrança sobre operações de leasing, “admitiu uma interpretação mais ampla do texto constitucional quanto ao conceito de serviço desvinculado do conceito de obrigação de fazer”.
Neste ano, o Supremo aplicou o entendimento em diversos julgamentos. No dia 29 de maio, em repercussão geral, definiu a incidência de ISS sobre contrato de franquia (RE 603136). E no dia 8 de junho, garantiu a cobrança sobre serviços de distribuição e venda de bilhetes e demais produtos de loteria, bingos, cartões, pules ou cupons de apostas, sorteios e prêmios (RE 634764).
No começo do mês passado, analisou a tributação sobre dois setores: de venda de medicamentos preparados por farmácias de manipulação sob encomenda (RE 605552) e de serviços de locação, sublocação, arrendamento, direito de passagem ou permissão de uso, compartilhado ou não, de ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e condutos (ADI 3142). Nesse último caso, incidiria em contratos mistos ou complexos, quando não dá para segmentar a obrigação de fazer.
Para o advogado Paulo Vieira da Rocha, o Supremo, em vez de cancelar a súmula, “tem afrouxado aos poucos a sua aplicação”. Ao menos, acrescenta, não houve uma ruptura drástica, “mas um amadurecimento gradual”. “Uma alteração brusca seria mais prejudicial à segurança jurídica”, diz.
O advogado Maurício Levenzon Unikowski, do Unikowski Advogados, também concorda que houve uma evolução gradual do entendimento para poder contemplar obrigações contratuais mais complexas. E que, após 2014, o STF já havia sinalizado que esse seria o caminho ao tratar de um contrato misto de uma construtora, com locação de maquinários e prestação de serviços (Rcl 14290).
“No julgamento, o Pleno já reconheceu que a Súmula Vinculante n° 31 somente seria aplicável em relações contratuais complexas se a obrigação de dar estiver claramente segmentada da prestação de serviços”, afirma o advogado.
Diogo Ferraz, do Freitas Leite Advogados, entende que o STF está caminhando para um entendimento predominante de que as atividades que contêm obrigações de fazer e obrigações de dar indissociáveis entre si seriam tributáveis pelo ISS. “Seria fundamental que os ministros deixassem isso absolutamente claro, mas acho difícil que isso aconteça no âmbito do plenário virtual”, diz. Para ele, “esse sistema impõe enormes limitações aos debates e à formação de entendimento da Corte”.
Ricardo Almeida, assessor jurídico da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais, não vê, porém, mudança de entendimento do Supremo. “Os ministros não abandonaram a dicotomia sobre obrigação de dar e de fazer, lamentavelmente, o que anteciparia uma possível revisão da súmula”, diz. “O que ocorre é que ao analisar contratos mais complexos, como os das franquias, o Supremo construiu o entendimento de que a obrigação de dar envolve, muitas vezes, a obrigação de fazer.”